domingo, 20 de fevereiro de 2011

2009 - 6º Prêmio Joinville de Expressão Literária


Quente e Suave

Gordinho sob a plumagem laranja e autor de um canto frenético. Cala a boca passarinho! É assim a cordialidade com que venho tratando o meu despertador de todas as manhãs – e auges da madrugada. Ele canta em sua esclerose empolgante, eu insisto em meu ponto de vista embriagado.

Na minha infância, ouço assobios ausentes. Em alguns finais de semana, meu pai reunia-se com os amigos, calçava as botas pretas, pegava a espingarda e saía para caçar. Minha mãe não lembra desse trecho da história. E enquanto os passarinhos vivenciavam essa adrenalina desnecessária, meu irmão saía também, todo de preto e com uma mochila secreta, onde presumo que escondesse cordas, lanternas e outros equipamentos para garantir a sua estimada sobrevivência. Saía para caçar os inimigos imaginários da vizinhança. E eu, nunca caçava nada. Foi nessa época, enquanto os meus pais ainda viviam juntos, que eu virei um copo de whisky – achando que fosse de refrigerante – e a minha alma quase se derreteu. Passei a odiar os destilados desde então. A infância é assim, o melhor filme, mas vem aos pouquinhos, em flashes, durante um banho quente ou um copo de vinho…

Lembro que para dormir eu precisava ver da cama um feixe de luz se dissolvendo no quarto. Eu tinha a certeza de que o escuro abrigava os passos da mulher de branco, aquela criada por Jorge Amado. E eu inventava essas coisas. Durante o dia fazia piqueniques semanais na grama com sanduíches e formigas, formulava perfumes com as pétalas de rosas arrancadas do jardim e me trancava na cozinha para simular programas gastronômicos. Eu também gostava de dar aula para uma vizinha mais nova, ensinava acontecimentos históricos imaginados e exigia tarefa de casa. Um dia essa minha aluna cresceu e percebeu a enrascada. Hoje não nos falamos muito.

Também havia os dias proibidos em que eu não podia chegar perto da churrasqueira. Era dia de jogo. Meu irmão convocava uns quatro ou cinco amigos, puxava a mesa pesada de madeira para o centro da lajota e a cobria com um cobertor até o chão. E lá, em baixo da mesa, assistiam a seleção brasileira ou outro time jogar numa pequena TV em preto e branco. Eu ficava do lado de fora, achando o máximo, ouvindo as vibrações coloridas, com ódio. Eu continuo morando na mesma casa onde cheguei há quase trinta anos e onde sempre existiu um universo de plantas e cores, um pé de pitangas e um grande pinheiro torto. Morar em casa é diferente.

A casa da minha avó, essa sim, era encantada. Tinha sótão, cheiro de café e uma atmosfera celestial. De olhos cerrados eu lembro das sopas, da plantação de espinafre, dos gatos perdidos que ela alimentava diariamente com tanto carinho. Lembro dos leques, das ombreiras, das anáguas. Sempre após o almoço aos domingos, eu e minha mãe íamos aprontá-la para o grande dia em que reunir-se-ia com as amigas para jogar e recordar. Sentava-me à mesa quietinha observando minha mãe comandar o making of enquanto mascava as pontinhas dos grampos de cabelo ou me encostava no balcão da sala para enfiar e girar todos os dedos no telefone antigo.

De forma escultural, os fios de cabelo negros de vovó envolviam os bobs, cheios de laquê. Com cuidado, o colar de pérolas saltava do porta-jóias de porcelana para adornar o pescoço. O perfume antigo, as moedas reservadas para o bingo… O figurino deveria estar perfeito – e sempre estava.

A infância é assim, o melhor filme, mas vem aos pouquinhos, em flashes, durante um banho quente ou um copo de vinho, branco, suave…




*3º lugar na categoria Conto/ Crônica.


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