quarta-feira, 4 de maio de 2011

Divagações 2011 - Dormindo com o inimigo

Dormindo com o inimigo


Pode-se dizer que é um quarto pequeno – proporcional, diriam. As paredes foram recentemente pintadas de lilás e há uma mandala sobre a cama, que conhece as minhas esperanças e infernos astrais. De dia, no guarda-roupa, a luz vermelha está quase sempre acesa e a caixinha preta ferve. À noite, o compasso do ventilador envolve celestialmente a cama, num semissilêncio perfeito. Noutra dimensão, a criatividade pulsa, alcançando o auge no emaranhado de sonhos.

Mas, a ruptura é quase sempre cruel – ainda que embalada pelo ritmo jamaicano. Suspiro, me torço, desligo o celular empurrando um pouco a cortina com o pé, e paro por alguns segundos. Pesco resquícios dos sonhos, me oriento nas tarefas do dia e faço planos de vida mais complexos, como cultivar a calma e a distância máxima possível do computador – que, no caso, habita esse mesmo espaço.

O triste é que antes mesmo do alongamento – não raras vezes – o dedinho frenético procura a luz. Após o café: e-mails, horóscopo, notícias, bate-papos, textos. Tudo misturado. O ponteiro do relógio parece estar fora de si. Levanto, caminho, volto, sento e abro tudo de novo. As janelas saltitam com disposição e o teclado pede férias. A máquina, negra, tem a cor da nossa relação atual: obsessiva, corrosiva, incoerente. Envolvo-me cada vez mais com o inimigo. Delírio...

Ele é instrumento tinhoso, que favorece contatos profissionais, permite que eu escreva e reescreva minhas divagações, e soluciona – rápida e questionavelmente – dúvidas das mais diversas, sobre rotas de endereços e bulas perdidas. Porém, quando mais requisitado, desfalece sem dar muitas explicações. Há vezes ainda, em que prega uma peça, conduzindo correções ortográficas malucas, complicando a memorização das novas regras gramaticais.

Vibrações, campos magnéticos, energia ruim. Há anos, ouvem-se alertas sobre o uso indiscriminado do computador, assim como orientações sobre os malefícios da sua instalação no quarto. Mas ignoramos. Acredito: a indisciplina no universo virtual causa malefícios ao corpo e parece bagunçar o cérebro, além de sugar o tempo precioso que temos.

De repente, ele está em sua vida mais do que você imagina. Há poucas semanas, por exemplo, eu estava procurando um documento na gaveta da sala – papel, impresso, não-virtual –, mas nem São Longuinho estava a fim de me ajudar. Senti uma brisa de solução que sussurrou assim: “Ah, acessa o Pesquisar” – ou Localize, como prefiram. Naquele instante, era explícita a confusão entre os mundos – e não havia nada de ilícito interferindo.

Talvez essa união pudesse ser sadia. Teríamos então acesso à lixeira virtual de nossas vidas, restaurar gestos e pessoas num clique. Ter dias em branco, como folhas de Word para colorir ao léu. Ter sempre um botão de ajuda à espreita. Talvez. Ainda assim, toda manhã eu sonho que a luzinha vermelha vai se apagar um pouquinho mais, a cada dia, na vida de cada um. E que na lista de próximos contatos eu vou incluir a música e a natureza. 

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